Na cidade do superlativo, o pouco não basta. Tudo em Ceilândia é grandioso: a arte, a cultura, o coração do povo ceilandense, a diversidade e, não menos importante, as praças. Um ou dois pontos de encontro não iriam traduzir o muito que o lugar representa. Por isso, a amada Cei é a região administrativa do Distrito Federal com mais praças espalhadas. São cerca de 100 locais distribuídos pelos mais de 230 km², onde a população pode descontrair, estudar, praticar esportes, trocar experiências e ter acesso a uma infinidade de possibilidades.
Praça da Bíblia, do Cidadão, do Trabalhador, dos Direitos, das Marias. Um misto daquilo que torna Ceilândia o que ela é, o cidadão, o povo trabalhador, as múltiplas religiões, as mais diversas Marias, a juventude. Muito mais que um “espaço público urbano livre de edificações”, como supõe o significado da palavra, as praças da cidade mais populosa de Brasília são o exemplo de que a Cei é para todos.
De todos os pontos de encontro da cidade, o Correio selecionou os mais conhecidos e frequentados para ver de perto a relação dos moradores com o espaço. A reportagem ouviu histórias, conheceu projetos e pessoas, para mostrar o que há de melhor nelas.
“Tem dois anos que se você passar aqui todos os dias, eu vou estar aqui. Sem exceção”. Essa é a rotina da bancária Thalita dos Santos, 29 anos, frequentadora da Praça do Trabalhador, na QNM 13. Ela comprou uma casa na Ceilândia Sul e adotou o local como ponto de encontro para ela e seus cachorros. A jovem criou um grupo no WhatsApp com outros moradores da região para, juntos, passearem com os animais de estimação.
Já são mais de 30 tutores de pets no grupo. Todos os dias eles marcam de ir à praça para que os peludos possam brincar e os humanos, socializar. “Eu comecei a vir primeiro, eu tinha ela e uma outra (cadela), mas a outra infelizmente foi atropelada, então eu passei a vir só com essa. Assim, começaram a vir outros cachorros e nós tutores decidimos fazer um grupo. Antes de sair para ir à praça, a gente sempre manda mensagem neste grupo e as pessoas se organizam para andar juntas”, contou a tutora da Cristal e da Lola.
Da Bíblia
A Praça da Bíblia é a mais conhecida de Ceilândia e uma das mais famosas do DF. Inaugurada em 30 de novembro de 2007, no Dia do Evangélico, a ideia do ponto era ser um local para realização de eventos cristãos, que atendesse, principalmente, a comunidade evangélica da cidade. Por isso não foram instalados bancos, equipamentos para o lazer de crianças e adultos, ou até mesmo árvores. Mas, ao longo dos 15 anos de existência, o propósito do espaço acabou se perdendo, já que poucos eventos religiosos ocorreram.
Assim, a comunidade adotou a praça da Bíblia como um espaço cultural. Samba, saraus, brinquedos infláveis, um misto de diversão, poesia e música, tomam conta do local nos últimos anos. Edvaldo Cirilo, de 51 anos, conhecido como Negro Vatto, é um dos frequentadores da praça e participa de projetos culturais de ocupação do espaço como o Samba da Comunidade e o Sarau-vá.
Ele, praticamente um irmão gêmeo de Ceilândia, tem raízes na cidade e dedicou boa parte da vida à comunidade. Um mês depois da fundação da Região Administrativa, em 30 de abril, nasceu Edvaldo, que nunca mais abriu mão dos laços que criou com a Cei. “Vi a cidade crescendo e juntamente fui me formando, aqui estudei em escolas públicas, terminei o ensino médio por aqui mesmo e aos 20 anos de idade ingressei na Polícia Militar do DF, por onde trabalhei longos 30 anos”, contou o artista. Desses 30 anos como policial, 20 foram na Ceilândia, prestando serviço à comunidade. Agora, depois de aposentado, Negro Vatto ocupa o tempo com poesias, desenhos, e o Samba da Comunidade.
A primeira edição do Samba da Comunidade foi em 2014. A formação inicial dos sambistas que encabeçaram o projeto contou com a participação de Negro Vatto, Mirinho do Banjo, João Henrique, Michael Santos e Jonas Dias. Ao longo de seis anos, as rodas de samba organizadas pelo projeto disseminaram a cultura do samba de raiz para as localidades onde o ritmo não era conhecido. A repercussão foi tão grande que fez alguns dos maiores nomes do gênero musical desembarcarem na praça da Bíblia para presenciar a grandiosidade do samba ceilandense.
Os sambistas da Velha Guarda da Portela, do Rio de Janeiro, Serginho Meriti, cantor e compositor que ostenta vários sucessos como Deixa a Vida me Levar, que ganhou o Brasil na voz de Zeca Pagodinho e Negra ngela na voz de Neguinho da Beija-Flor, entre outras personalidades, já participaram das sete horas em que o batuque, pandeiro e percussão soam forte sob a organização do Samba da Comunidade.
Por conta da pandemia da covid-19, que começou em 2020, o projeto teve que pausar os encontros. “A Praça da Bíblia é uma praça que é bem popular. Na praça acontecem inúmeros eventos culturais, mas por conta da pandemia, está parada. Lá funciona um comércio dos ambulantes, espetinho, macarrão do Karl Max, e outros. Eu às vezes passo pela praça e vejo o quanto está fazendo falta pra comunidade as atividades culturais”, lamenta Negro Vatto.
Mesmo com o relaxamento das medidas de segurança, os projetos na Praça da Bíblia ainda não retornaram. De acordo com o rapper Rafinha Bravoz, representante do Sarau-vá, que reunia cerca de 300 pessoas durante o saraus, as atividades de poesia no espaço devem retornar em breve. “O ideal é que no máximo em maio a gente recomece”, afirmou. Além disso, existe um projeto que será apresentado à Câmara Legislativa do DF (CLDF) ainda no primeiro semestre deste ano, para tornar a praça um espaço mais acolhedor.
“A praça da bíblia fica em um ponto estratégico, entre a Ceilândia antiga, Setor O, início do Sol Nascente e a QNQ, então é um local em que passa muita gente e de fácil acesso para muitos moradores. Pretendemos trazer um espaço gastronômico para o local, equipamentos públicos como PECs (Pontos de Encontro Comunitários) parque infantil, anfiteatro para realização de apresentações culturais e cultos religiosos”, informou o administrador da RA, Fernando Fernandes.
De acordo com o administrador, a ideia do projeto gastronômico surgiu dos próprios moradores. “Foi uma ideia nossa ao conversar com alguns frequentadores da praça. Vamos tocar pra frente e até o final do ano teremos novidades boas. Muita gente frequenta a Praça da Bíblia para praticar exercícios e as crianças para brincar com os coleguinhas, então queremos dar uma estrutura, queremos mudar a cara”, afirmou Fernandes. “A ideia é dar mais movimentação ao local, porque acabou ficando uma praça grande, pavimentada, com a bíblia no meio e nenhum equipamento para atrair as pessoas”, resumiu.
Do Cidadão
A ocupação a fim de ressignificar espaços públicos também tomou conta de outro ponto de encontro na Cei. Na Praça do Cidadão, localizada na EQNM 18/20, um projeto deu significado ao local. Há 15 anos, o Jovens de Expressão ocupa a praça para colocar a população de Ceilândia e arredores em contato com a arte, a educação, a saúde, a dança, a música e mais. “Incentivamos as potencialidades da juventude”, afirma o programa nas redes sociais, que tem como premissa dar voz aos moradores da cidade.
São mais de 500 jovens assistidos diretamente pelo programa todos os anos e cerca de dois mil indiretamente. Na praça, o Jovens de Expressão (JEX) tem um local próprio para atendimento ao cidadão, terapia comunitária, pré-vestibular, oficinas, empreendedorismo, além de manter o ponto de encontro sempre vivo, com muitas cores e grafites que transmitem a essência de Ceilândia. “O Jovens de Expressão começou como ocupação, em contrapartida a uma pesquisa que saiu em 2006 sobre vulnerabilidade na juventude, que mostrou as cidades mais violentas do Distrito Federal. Ceilândia, Sobradinho e Planaltina, eram as regiões com mais índices de mortes violentas. Então o projeto surgiu para tirar o jovem de Ceilândia da ociosidade, oferecendo atividades culturais, esportivas, cinematográficas, entre outros”, informou Rayane Soares, coordenadora do JEX.
Basta passar pelo local para ver que, hoje, Ceilândia é muito mais que os índices de violência. “No momento nós estamos com o Cine de Expressão, que são oficinas voltadas para o cinema, com filmes introdutórios”, contou Rayane. Pelas redes sociais é possível perceber que a juventude da cidade se envolve com as oficinas e mostram seus talentos, seja com libras, canto, poesia, fotografia, produções cinematográficas, etc. Além disso, na Praça do Cidadão o Jovens de Expressão também montou uma galeria de arte que está com a exposição Quinquilharias, do grupo Antiquário, em exibição até 30 de março.
Com o curso pré-vestibular, o projeto sediado na praça também capacita os estudantes ceilandenses. No Sisu do primeiro semestre deste ano, o cursinho aprovou 22 alunos em universidades públicas pelo país. Foram 12 jovens que conquistaram uma vaga na Universidade de Brasília (UnB), três na Universidade Federal de Goiás (UFG), além de aprovados na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Universidade Federal do Piauí (UFPI), no Instituto Federal de Brasília (IFB), na Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) e na Universidade Federal de Catalão (UFCAT).
“No decorrer do tempo o Jovens de Expressão foi mudando porque a gente entende que a juventude é plural e está em movimento, então fomos acrescentando outras atividades. Hoje temos o pré-vestibular comunitário, cursos de línguas, fora as oficinas culturais”, relatou Rayane.
Dos Direitos, Marias e Juventude
Além das três já citadas, outras praças também oferecem atividades enriquecedoras para os apaixonados por Ceilândia. Na Praça dos Direitos, por exemplo, há um campo sintético de futebol, pista de skate, quadra coberta para prática de esportes como basquete, futsal e vôlei. É um local que abriga aqueles que não abrem mão de movimentar o corpo e usam o esporte como válvula de escape.
Na Praça das Marias, são os idosos que mais ocupam o espaço para sair da ociosidade. Um Ponto de Encontro Comunitário (PEC) está instalado no local. As crianças também frequentam a praça para se divertirem, por conta do parquinho infantil com balanços e outros brinquedos que envolvem a região com risadas e a alegria dos pequenos.
Existe também a Praça da Juventude, com pista de skate e quadras, mais um ponto para os que se divertem em cima de quatro rodinhas. Como o próprio nome sugere, é um local destinado aos jovens que desejam ter um ponto de encontro para praticar esportes e encontrar os amigos.
“Ceilândia tem pouco mais de 100 praças. Cada entrequadra tem uma espécie de praça, que engloba as PECs, quadras poliesportivas, parques infantis, quadras de areia e campos de futebol sintéticos”, ressaltou Fernando Fernandes. Algumas dessa centena estão desativadas, por estarem passando por revitalização, como é o caso, por exemplo, da Praça do Metrô. O Correio listou algumas em um mapa, para quem quiser conhecer melhor (veja abaixo). “Nós iniciamos desde de junho de 2021 uma revitalização em todas as praças, em parceria com o Renova DF. Um terço delas foram concluídas, mas como o período de chuvas estava muito intenso, tivemos que pausar. Vamos retomar agora como final do período chuvoso e a ideia é recuperar todas essas praças”, garantiu o administrador.
“Sou nascido e criado em Ceilândia, essas praças para nós são muito úteis. Cada entrequadra instalou-se um ponto para prática de esportes e lazer próximo às residências. Isso acabou afastando a criminalidade. É uma máxima da segurança pública: onde a população de bem ocupa, os marginais se afastam”, frisou Fernando Fernandes.
Esse é o caso da praça da EQNN 17/19, em Ceilândia Sul, onde veteranos do futebol e do vôlei tomaram conta da praça, ocupando diuturnamente o espaço, com escolinha de futebol para crianças, torneio de dominó e a prática de esportes por esses veteranos. Ao lado da Escola Classe 2, na Guariroba, a comunidade também abraçou a praça, criando uma área de esportes. “Nesses locais, a população mudou a história das pracinhas, que antes eram frequentadas por marginais. Nós entramos com mão de obra e equipamentos para revitalizar os espaços e hoje são um ponto de encontro saudável para os moradores”, disse Fernandes.
“As praças têm importância para os moradores quando são desenvolvidas políticas públicas, quando se tem uma quadra poliesportiva, algumas tem funcionais, parques para as crianças”, ressaltou Nego Vatto. “Nós que aqui vivemos temos orgulho da nossa cidade, um dos locais mais nordestinos do DF, aqui é um celeiro cultural muito grande, os bailes black, casa do cantador, o rap, forró, cineastas, samba, de tudo um pouco encontramos. E pras comidas típicas temos nossa feira central. A Ceilândia hoje representa, não só pra mim, mas para todos moradores, e para o DF, a maior e melhor cidade. Ainda falta muita coisa por aqui, as autoridades poderiam inclinar seus olhos mais para o lado de cá. Falta cinema, falta shoppings, falta mais comprometimento das autoridades para conosco”, reivindicou o sambista. “Ceilândia, povo guerreiro, povo trabalhador”, expressou.
Adote uma praça
Para quem sente amor pela Ceilândia e suas praças e quer ter uma para “chamar de sua”, existe um projeto do Governo do Distrito Federal (GDF) chamado Adote Uma Praça. O programa tem como objetivo firmar parcerias com empresários e moradores do DF para a manutenção e recuperação de áreas públicas. Embora tenha as praças como principal foco, o programa também contempla jardins, balões rodoviários, estacionamentos, canteiros de avenidas, pontos turísticos, monumentos, parques infantis e Pontos de Encontro Comunitário (PECs).
Na Ceilândia, diversas praças foram recuperadas pelo programa. Em 2020, por exemplo, a Instituição Ruas se juntou ao GDF por meio do Adote Uma Praça para revitalizar a Praça do Cidadão. O local foi contemplado com ações de revitalização como reforma do parquinho, pintura e troca de bancos, pintura da quadra, jardinagem, instalação de lixeiras e a criação de painéis grafitados nas paredes dos prédios e nas arquibancadas da quadra esportiva.
Essa foi a primeira sociedade dentro do projeto na região. Depois dela, outros empresários e moradores decidiram investir para deixar a cidade mais bonita. Em 2021, a praça da QNO 9/11, no Setor O, ganhou um campo de areia, grafite, placa, lixeiras, bancos, demarcação de quadra esportiva e traves. Na época foram retirados mais de 10 caminhões de lixo e entulho do local. A praça foi adotada pelo empresário Carlos Bolivar, proprietário de uma loja de comunicação visual que funciona na quadra.
Qualquer pessoa pode adotar um espaço público, basta entregar requerimento na sede da Administração Regional responsável pelo endereço a ser adotado, com as informações sobre a proposta de manutenção e dos serviços que pretende realizar, descrição das melhorias e período de vigência, além da documentação para pessoa física ou jurídica. A partir disso, a administração vai analisar e encaminhar o Termo de Cooperação para a Secretaria de Estado de Projetos Especiais para assinatura digital pelo Secretário ou seu Adjunto.
CB