O presidente Luiz Inácio Lula da Silva vem sendo aconselhado a não vetar completamente o projeto que estabelece um marco temporal para a demarcação de terras indígenas no país. Na última semana, ganhou força no governo o entendimento de que ele deve derrubar apenas alguns trechos do texto, mantendo a condição de os territórios estarem ocupados pelos povos tradicionais em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, para que sejam transformados em áreas de reserva. O tema, contudo, põe em lados opostos alguns dos principais auxiliares do petista, como a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, e o líder do Palácio do Planalto no Senado, o senador Jaques Wagner (PT-BA).
Na prática, caso opte por vetar a proposta parcialmente, o presidente vai contrariar a ala do Executivo ligada aos temas ambientais, como Marina e a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, que defendem o veto total. O presidente tem até o dia 20 para decidir se sanciona o texto.
Na Casa Civil, contudo, é considerado improvável que o projeto seja totalmente barrado. O ministro Rui Costa defende uma análise ponto a ponto do que foi aprovado, em linha do que argumenta Jaques Wagner (PT-BA), principal entusiasta da sanção. Para o senador, Lula deve derrubar apenas os chamados “jabutis”, itens incluídos no texto que não têm relação com o objetivo inicial da proposta.
“Jabutis”
O projeto aprovado pelo Congresso, além de estabelecer o marco temporal, permite, por exemplo, que produtos transgênicos sejam cultivados em terras indígenas. Também abre a possibilidade de revisão de demarcações feitas no passado e flexibiliza o contato com povos isolados ao autorizar entidades privadas a realizar ações consideradas de utilidade pública com essas etnias.
O receio de Wagner com um veto total é provocar um conflito com o Senado, que chancelou o projeto com amplo apoio da base do governo: dos 43 votos favoráveis, 34 vieram de partidos com cargos na gestão petista.
Além disso, o líder do governo no Senado argumenta que o Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu pela inconstitucionalidade da tese do marco temporal e, por isso, Lula não precisaria enfrentar o desgaste de enterrar uma medida que tende a ser tornada inválida pelo tribunal. Para isso acontecer, porém, será preciso que a Corte seja novamente instada a se manifestar sobre a questão.
— Depois da decisão do STF de rejeitar o marco temporal para terras indígenas, a aprovação do PL no Senado acaba sendo inócua, do ponto de vista constitucional. Cabe ao governo tratar os pontos adicionais, como a possível revisão de demarcações e o contato com indígenas isolados — disse o líder do governo.
Aliados que defendem a manutenção de trechos do projeto por Lula argumentam ainda que um veto total pode ser interpretado pelo Senado como uma afronta do Planalto. A casa legislativa iniciou uma ofensiva nos últimos dias contra decisões da Corte, e o governo tem evitado tomar partido para não ser atingido. A queda de braço teve novos capítulos na semana passada, com o avanço do projeto que impõe limites às decisões dos ministros do tribunal.
Em linha oposta à de Wagner, os ministérios de Marina e de Sônia Guajajara preparam pareceres nos quais vão defender o veto integral ao projeto. Já o Ministério da Agricultura, chefiado por Carlos Fávaro, informou que a sua manifestação será feita em caráter reservado, ou seja, não será público.
Os pareceres de cada ministério serão enviados à Casa Civil, até o final desta semana, para orientar a tomada de decisão do presidente. Ao mesmo tempo, a Subchefia de Assuntos Jurídicos (SAJ), subordinada à pasta comandada por Rui Costa, fará uma análise da constitucionalidade do texto.
A pasta dos Povos Indígenas, contudo, já se antecipou. No mesmo dia da votação do projeto pelo Senado, divulgou uma nota em que lamentava a aprovação. Na ocasião, afirmou que nenhum dos pontos críticos e sensíveis aos direitos indígenas apontados pela ministra Sônia Guajajara em conversas com senadores havia sido acatado.
A pasta também dizia que “o PL vai na contramão das conversas globais, agora encabeçadas pelo governo Lula, de proteção ao meio ambiente e liderança brasileira na agenda contra as mudanças climáticas”.
A defesa à tese do veto total, porém, não está restrita apenas aos dois ministérios. No próprio Planalto há quem advogue em favor da derrubada integral, que vai de encontro às bandeiras de esquerda defendias por Lula.
O líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues, também chegou a afirmar que, numa primeira análise, “todo o conjunto deve ser vetado”.
— Um governo com a característica da gestão de Lula não tem como sancionar um texto como este. A análise pormenorizada ainda deve ser submetida às áreas técnicas e, sobretudo, deverá ser ouvido o Ministério dos Povos Indígenas. Numa primeira análise do texto, todo o conjunto deve vetado — disse Randolfe no dia 28 de setembro, um dia após a aprovação pelo Senado.
Uma campanha capitaneada por entidades ligadas às causas indígenas defende o veto irrestrito. A iniciativa tem o apoio de parlamentares de esquerda, como o PSOL.
Desde a campanha eleitoral do ano passado, Lula tem defendido a retomada dos processos de demarcação de territórios indígenas, paralisados durante o governo de Jair Bolsonaro. Ao todo, oito reservas já foram oficializadas desde o início do ano. Mais seis devem ser homologadas até o mês de dezembro.
— Eu não quero deixar nenhuma terra indígena que não seja demarcada nesse meu mandato de 4 anos. Esse é um compromisso que eu tenho e que eu fiz com vocês antes da campanha — disse Lula ao participar de ato de representantes indígenas em Brasília, em abril.
A aposta de auxiliares de Lula é que a decisão dele deverá ficar para próximo da data limite, que é o dia 20. Em recuperação de uma cirurgia no quadril, o presidente não se encontrou com ministros nesta semana. Tem conversado com auxiliares por telefone e evita ligações em vídeo, o que deve atrasar uma definição.
Mais um embate
Caso decida pela derrubada parcial, Lula irá impor mais uma derrota a Marina, que relutou em apoiar o petista após romper com ele em 2008. Em maio deste ano, por exemplo, Lula cedeu à articulação de partidos de centro que esvaziou a pasta do Meio Ambiente durante análise da chamada MP dos Ministérios, que reestruturou a Esplanada.
Outro episódio que opôs Marina Silva a parte do governo envolveu a exploração de petróleo na chamada Margem Equatorial. A ministra, considerada uma referência mundial na área ambiental, defendeu a decisão do Ibama de rejeitar um pedido da Petrobras para realizar estudos na região da Foz do Amazonas. Lula, entretanto, já disse que essa é uma decisão de Estado e que o governo federal dará aval à instalação de sondas da estatal na região.
Correio Braziliense