Uma investigação iniciada há um ano pelo Tribunal de Contas da União criou desgaste para o ex-juiz Sergio Moro no momento em que ele dá os primeiros passos para viabilizar sua candidatura presidencial, lançando dúvidas sobre sua relação com a consultoria americana Alvarez & Marsal.
Na última sexta-feira (28), o ex-juiz tomou a iniciativa de divulgar seus rendimentos e expôs os ganhos milionários que obteve no setor privado após deixar o governo Jair Bolsonaro, mas perguntas sobre os clientes para quem trabalhou e as vantagens tributárias que obteve continuam sem resposta.
O que a Alvarez & Marsal faz?
Com sede nos Estados Unidos e escritórios em 28 países, a A&M é uma consultoria de gestão empresarial que se destacou ajudando a reestruturar companhias em dificuldades financeiras. A empresa começou a atuar no mercado brasileiro em 2004.
Nos últimos anos, ela foi nomeada no Brasil por diferentes juízes para administrar os processos de recuperação judicial de empresas atingidas pelas investigações da Lava Jato, incluindo a Novonor, que controla os negócios da família Odebrecht, e as empreiteiras OAS e Galvão Engenharia.
Seu papel como administradora judicial é fiscalizar a empresa em dificuldades e monitorar a execução do seu plano de recuperação, assessorando o juiz do caso e zelando pelos interesses dos credores. Sua remuneração é fixada com um porcentual das dívidas em cada processo, no máximo 5%.
A consultoria informou ao Tribunal de Contas da União que faturou R$ 65 milhões com essas empresas nos últimos anos, o equivalente a 78% do total de honorários que recebeu como administradora de processos de recuperação judicial e falência no país desde 2014, quando a Lava Jato começou.
O que Moro foi fazer na Alvarez & Marsal?
Em novembro de 2020, a consultoria anunciou a contratação do ex-juiz para atuar na área de disputas empresariais e investigações internas, ao lado de uma equipe global que incluía ex-procuradores e outros ex-funcionários americanos e britânicos.
“Ingresso nos quadros da renomada empresa de consultoria internacional Alvarez & Marsal para ajudar as empresas a fazer a coisa certa, com políticas de integridade e anticorrupção”, disse Moro ao anunciar a novidade. “Não é advocacia, nem atuarei em casos de potencial conflito de interesses.”
Responsável pelas ações da Lava Jato em Curitiba, Moro abandonou a magistratura em 2018 para ser ministro da Justiça no governo Jair Bolsonaro. Ele se demitiu em 2020 e rompeu com o presidente, que acusou de tentar interferir na Polícia Federal para proteger sua família contra investigações.
Por que a contratação de Moro causou controvérsia?
Críticos do ex-juiz culpam a Lava Jato pela ruína de grupos como a Odebrecht e o acusaram de buscar enriquecimento pessoal trabalhando para uma empresa americana que agora lucra com as dificuldades das companhias investigadas.
Moro disse que precisava trabalhar para sustentar sua família após deixar o governo Bolsonaro. Em várias entrevistas, ele apresentou o trabalho para a Alvarez & Marsal como continuidade de sua atuação na Lava Jato, defendendo a adoção de controles internos mais rigorosos nas empresas.
O ex-juiz entrou na Alvarez & Marsal após cumprir a quarentena de seis meses imposta pela legislação brasileira a ex-ocupantes de cargos públicos e se desligou da consultoria um ano depois. Em novembro, ele se filiou ao Podemos para se lançar como candidato a presidente nas eleições deste ano.
Havia risco de conflito de interesses?
Uma cláusula do contrato de Moro com a Alvarez & Marsal estabelecia que ele não poderia fornecer aos clientes da consultoria informações confidenciais que detivesse por causa de sua passagem pelo governo ou sua atuação como juiz em Curitiba.
Além disso, a cláusula impedia Moro de prestar serviços de qualquer natureza para a Odebrecht e outros clientes da A&M que pudessem gerar conflito com decisões que tomou como juiz no passado. Segundo Moro, a menção à Odebrecht na cláusula foi uma exigência sua nas discussões do contrato.
A Alvarez & Marsal mantém empresas separadas para as várias áreas em que oferece serviços e afirma que assim evita conflitos de interesse. A unidade para a qual Moro trabalhou, voltada para disputas e investigações, é separada da administradora judicial e das outras empresas do grupo.
Que clientes Moro atendeu enquanto trabalhou para a Alvarez & Marsal?
Moro e a consultoria não revelam os clientes para os quais ele prestou serviços, alegando que os contratos têm cláusulas de confidencialidade que precisam ser respeitadas mesmo por quem já deixou a empresa.
Antes de entrar na Alvarez & Marsal, Moro fez um parecer jurídico para o israelense Benjamin Steinmetz, ex-sócio da mineradora Vale que tem uma disputa com a empresa por causa de um projeto na Guiné. O ex-juiz recebeu R$ 200 mil pelo trabalho, contratado por um escritório de advocacia.
Quanto ele ganhou da A&M?
Moro disse que acertou com a Alvarez & Marsal um salário bruto de US$ 45 mil por mês, equivalente a R$ 243 mil hoje. Além disso, recebeu US$ 150 mil como bônus de contratação, um tipo de incentivo comum no mercado. A cifra corresponde hoje a R$ 809 mil.
A consultoria informou que pagou a Moro, por 11 meses de trabalho, US$ 656 mil em valores brutos, o equivalente a R$ 3,5 milhões pela cotação atual do dólar. O ex-juiz disse ter devolvido parte do bônus, R$ 67 mil, por ter deixado a empresa antes do prazo previsto em seu contrato, de dois anos.
Como os rendimentos de Moro foram pagos?
Segundo a Alvarez & Marsal, o ex-juiz recebeu 65% dos rendimentos no Brasil, por meio de uma empresa de consultoria que ele criou quando ainda estava na quarentena, a Moro Consultoria e Assessoria em Gestão Empresarial de Riscos Ltda.
Em ofício enviado à Justiça de São Paulo no ano passado, a A&M explicou que Moro foi contratado inicialmente como pessoa jurídica no Brasil porque só poderia ser contratado como funcionário nos Estados Unidos após conseguir visto de trabalho como estrangeiro, o que ele levou meses para obter.
Na semana passada, a Alvarez & Marsal informou ao TCU que o contrato com a consultoria do ex-juiz no Brasil foi assinado em 23 de novembro de 2020 e vigorou até 2 de junho do ano passado. O contrato como empregado nos EUA foi assinado em 7 de abril e encerrado em 26 de outubro.
Moro pagou impostos?
Sim, como pessoa jurídica no Brasil e como pessoa física nos EUA, de acordo com duas notas fiscais e dois contracheques que ele exibiu ao revelar seus ganhos. Embora tenha recebido a maior parte dos rendimentos no Brasil, o ex-juiz recolheu mais impostos nos EUA.
Segundo as notas fiscais, a Alvarez & Marsal e a empresa de consultoria de Moro recolheram tributos equivalentes a 19% dos valores brutos pagos no Brasil, porcentual típico para prestadores de serviço como ele. Nos EUA, o imposto de renda e outros tributos comeram 46% dos salários de Moro.
Pode-se estimar que ele tenha ficado com US$ 470 mil dos US$ 656 mil pagos pela consultoria americana, ou R$ 2,5 milhões, após o recolhimento dos impostos. Os documentos divulgados indicam que Moro e sua empresa pagaram cerca de R$ 1 milhão em tributos, dos quais 56% ficaram nos EUA.
Ele teve alguma vantagem com isso?
Ao ser contratado inicialmente como pessoa jurídica e receber a maior parte dos rendimentos por meio de sua empresa no Brasil, Moro recolheu menos impostos do que teria pago se tivesse sido contratado nos EUA desde o início ou como funcionário no Brasil.
Se tivesse sido contratado como pessoa física no Brasil, com carteira de trabalho assinada, ele teria que pagar 27,5% de Imposto de Renda e contribuir com a Previdência Social. Além disso, a Alvarez & Marsal teria que contribuir com a Previdência e pagar outros encargos trabalhistas.
A opção pela contratação de altos executivos como pessoas jurídicas é comum no mercado, por causa das vantagens que a legislação brasileira oferece para os dois lados nesses casos. Os dividendos recebidos por Moro de sua empresa de consultoria são isentos do pagamento de Imposto de Renda.
O ex-juiz morou nos Estados Unidos nos meses em que trabalhou para a A&M, mas manteve domicílio tributário no Brasil e continua obrigado a prestar contas à Receita Federal. O imposto pago nos EUA poderá ser compensado se ele tiver outros rendimentos tributáveis a declarar no Brasil neste ano.
O que o Tribunal de Contas da União tem a ver com isso?
Em fevereiro do ano passado, a pedido do Ministério Público junto ao TCU, o ministro Bruno Dantas mandou abrir uma investigação sobre a relação de Moro com a Alvarez & Marsal, para examinar a hipótese de conflito de interesses.
O subprocurador-geral Lucas Rocha Furtado, autor da representação que levou à abertura da investigação, justificou o pedido argumentando que a derrocada de empresas como a Odebrecht criara risco de prejuízos para os cofres públicos e por isso a atuação de Moro deveria ser examinada.
A área técnica do órgão de controle se manifestou contra a investigação após uma análise preliminar, mas Bruno Dantas decidiu aprofundá-la em dezembro, requisitando da Alvarez & Marsal informações detalhadas sobre a contratação de Moro e os valores pagos ao ex-juiz por seus serviços.
Após Moro divulgar seus ganhos com a A&M, o procurador Lucas Furtado concluiu que as informações divulgadas por ele e pela empresa afastavam a hipótese de conflito de interesses e pediu o arquivamento das investigações no TCU. Bruno Dantas ainda não se pronunciou sobre esse pedido.
Furtado sugeriu também que as informações colhidas pelo órgão de controle sejam encaminhadas à Receita Federal para análise. Especialistas consultados pela Folha disseram que Moro e a Alvarez & Marsal podem ter problemas com o fisco por causa da maneira como ele foi contratado.
Se a Receita entender que havia vínculo empregatício na relação de Moro com a consultoria desde o início e ele foi contratado como pessoa jurídica com o objetivo de reduzir tributos a serem recolhidos no Brasil, o ex-juiz e a consultoria americana poderão ser alvo de sanções na área tributária.
J.Br