Como promotor conseguiu primeira condenação por estupro virtual no Brasil

O abuso foi descoberto quando o pai acessou as redes sociais da criança por meio do computador que ambos usavam

Foto: Getty Images

Rafael* tinha 10 anos quando entrou, sozinho, em 2015, no site Omegle, uma plataforma americana de conversas anônimas que tem como slogan “Talk to strangers” (“Fale com estranhos”, em tradução para o português).

Morador de São Paulo, foi lá que a criança, que teve seu nome real preservado pela reportagem, conheceu o usuário que usava no chat o codinome ‘Pedro Dalsch’ , de 27 anos. Era, na verdade, um predador sexual de Porto Alegre que acabaria preso três anos depois.

As conversas entre os dois migraram para outras plataformas virtuais, onde trocavam mensagens com frequência e o criminoso fazia solicitações sexuais para o menino por meio da câmera.

A BBC News Brasil entrou em contato com o Omegle e pediu um posicionamento sobre o caso. A resposta, a seguir, diz que a plataforma “leva a segurança dos usuários extremamente a sério” e que faz moderação de conteúdo.

“Como esperamos que você possa entender, o Omegle é limitado no que podemos compartilhar. Podemos, no entanto, compartilhar a declaração abaixo com você, atribuível a um porta-voz da Omegle.”

“O Omegle leva a segurança dos usuários extremamente a sério. Embora os usuários sejam os únicos responsáveis por seu comportamento ao usar o site, nós implementamos voluntariamente serviços de moderação de conteúdo que usam ferramentas de IA e moderadores humanos contratados.”

“O conteúdo sinalizado como ilegal, inapropriado ou em violação das políticas da Omegle pode levar a uma série de ações, incluindo denúncias às agências de aplicação da lei apropriadas. Também trabalhamos com a aplicação da lei e organizações que trabalham para impedir a exploração online de crianças.”

No documentário produzido pela BBC ‘Estou processando o site que me deu match com meu agressor’, há diversas tentativas de entrar em contato com Leif K Brooks, criador do site, por parte da equipe jornalística. Brooks respondeu a um único e-mail, com palavras semelhantes às que chegaram à equipe do Brasil.

No caso de Rafael*, o abuso foi descoberto quando o pai acessou as redes sociais da criança por meio do computador que ambos usavam.

A denúncia feita pelo pai chegou ao Ministério Público do Rio Grande do Sul, estado de residência do criminoso, e que fazia parte de um sistema de combate à pedofilia junto com a Polícia Federal.

“Como o criminoso usava um avatar e um nome falso, precisamos fazer uma investigação minuciosa. Conseguimos identificar que ele usava um computador ligado à internet de uma grande universidade do Rio Grande do Sul que tinha cerca de 2600 computadores”, rememora Júlio Almeida, advogado e, na época, promotor de justiça responsável pelo setor de investigação do Ministério Público na área de violência sexual contra a criança em crimes de internet.

O perfil de um estudante de medicina chamou a atenção dos investigadores: ele tinha produção acadêmica na área de sexologia, bem como trabalhos voluntários na pediatria.

“Isoladamente, são coisas boas, mas quando se está procurando alguém que tem desejo sexual por criança, são sinais de alerta.”

Com autorização de apreensão de equipamentos e quebra do sigilo da privacidade nos meios digitais, Almeida e membros investigadores do Instituto Geral de Perícia entraram na casa do suspeito e abriram seu computador.

“Apareceram mais de seis mil imagens de pedofilia, e com características diferentes do que normalmente se encontra, que são de crianças do leste europeu, loiras e de olhos claros, que vem pela deepweb. Nesse caso, havia muitos arquivos de crianças e adolescentes com nomes brasileiros e com características latino americanas. Foi um sinal de que não era apenas um consumidor de pornografia infantil, mas que estávamos diante de um predador sexual.”

Enquanto a investigação avançava com o intuito de comprovar se o estudante de medicina era, como as pistas indicavam, o homem que usava o nome de Pedro Dalsch, ele foi preso preventivamente.

O advogado e então promotor Júlio Almeida conta que, nesse meio tempo, a equipe envolvida analisou que a legislação brasileira permitia, com base naquilo que tinham apreendido, enquadrá-lo em alguns crimes.

Tratavam-se, no entanto, de delitos para os quais eram previstas penas pequenas, entre um ano a quatro anos de reclusão. Seriam os crimes de armazenamento de imagens de crianças e adolescentes em ato sexual ou de nudez, ou assédio sexual.

“Uma vez que confirmado que ele era quem trocava mensagens com a criança paulista de 10 anos de idade, sabíamos que precisávamos buscar uma condenação mais adequada.”

A busca pela primeira condenação
A legislação brasileira define como estupro de vulnerável o ato de conjunção carnal ou libidinoso com menor de 14 anos – a lei considera que pessoas nessa idade não têm discernimento para consentir relações sexuais. O artigo 217-A do código penal também considera como o mesmo crime os atos contra outras pessoas em situação de vulnerabilidade, como pessoas com deficiência ou idosos. A pena é reclusão de oito a 15 anos.

“Encontrei uma decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) que tratava de uma situação na qual um adulto levou uma menina com menos de 13 anos de idade a um motel. Lá, este homem praticou masturbação vendo a criança se despir, mas sem tocá-la. O STJ considerou estupro, entendendo que o contato físico não era mandatório para sentença, bastava que ambos estivessem no mesmo ambiente e que a ação de um satisfaça o desejo sexual de outro. Ali encontrei o conceito que eu precisava atualizar”, lembra Almeida.

O advogado passou a trabalhar, a partir dessa descoberta, para aplicar a mesma tese no ambiente virtual.

“A atualização era necessária, já que hoje, pela internet, nós conseguimos fazer comércio, trocar afeto, transmitir documentos, entre outras coisas – e tudo isso tem validade. A conclusão lógica é que também se pode praticar sexo por internet e, portanto, colocar um menor em situação de vulnerabilidade. Parece uma coisa óbvia, mas ainda não existia nenhuma condenação parecida”, explica.

O promotor e sua equipe seguiram com a denúncia.

“Tivemos alguma resistência por parte de colegas do Ministério Público, que não acreditavam totalmente na tese, mas decidimos processar o homem pelo crime de estupro virtual, como se ele estivesse no mesmo ambiente daquela pessoa, porque realmente estava no mesmo ambiente daquela criança, só que no ambiente virtual. Foi uma denúncia longa, na qual foram expostos os atos e conversas absurdas entre ele e o menino.”

12 anos e 9 meses de reclusão
Após a sentença inicial, a defesa entrou com um recurso, mas o tribunal manteve a condenação com pequena redução na pena, que foi estipulada, por fim, em 12 anos e nove meses de reclusão.

“Foi inédito e acabou gerando a possibilidade de outros casos acabarem com a mesma condenação, que consideramos justa, já que o crime sexual contra criança e adolescente, ainda que não tenha o contato físico que não deixe sequelas físicas, é um crime que deixa sequelas mentais muito importante na vida de uma criança”, reflete Almeida.

“Uma criança ou adolescente pode ser destruído na sua integralidade, integridade física e psíquica com um crime desses. Considero termos conseguido grande avanço ao ter essa sentença pela justiça brasileira.”

Correio Braziliense

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