O texto de hoje é um alerta à sociedade, mas em especial aos políticos e líderes cristãos, bem como para quem, mesmo não tendo religião alguma, preza pelo conceito de Estado laico e o defende, ciente de que o governo não pode favorecer determinado grupo religioso em detrimento de outros, muito menos subsidiá-lo.
O motivo desse alerta se baseia em um trecho da Resolução 715 do Ministério da Saúde, aprovada em julho passado, durante a 17ª Conferência Nacional de Saúde. Nesse documento encontramos uma série de propostas no âmbito das políticas públicas, e entre elas destaco o trecho abaixo, com destaque meu:
“(Re)conhecer as manifestações da cultura popular dos povos tradicionais de matriz africana e as Unidades Territoriais Tradicionais de Matriz Africana (terreiros, terreiras, barracões, casas de religião, etc.) como equipamentos promotores de saúde e cura complementares do SUS, no processo de promoção da saúde e 1ª porta de entrada para os que mais precisavam e de espaço de cura para o desequilíbrio mental, psíquico, social, alimentar e com isso respeitar as complexidades inerentes às culturas e povos tradicionais de matriz africana, na busca da preservação, instrumentos esses previstos na política de saúde pública, combate ao racismo, à violação de direitos, à discriminação religiosa, dentre outras.”
O que vemos acima é de causar espanto, pois se entendemos corretamente, o Ministério da Saúde do governo Lula está pretendendo incorporar, tratar e/ou considerar os terreiros de umbanda, candomblé e outros como parte dos “equipamentos promotores de saúde e cura” do Sistema Único de Saúde (SUS)?
É o que sugere o texto quando se refere a esses locais de CULTO afrodescendentes como “equipamentos” (…) “complementares do SUS”, bem como suposta “1ª porta de entrada” para quem precisa ter acesso a “espaço de cura para o desequilíbrio mental, psíquico…”.
Como assim, “cura” para desequilíbrio mental? Terreiros de umbanda e outros, onde se praticam rituais religiosos e não atividade científica, agora vão poder exercer atividades cuja competência é exclusiva dos psicólogos e psiquiatras, estes sim, formados e devidamente capacitados à luz da ciência para lidar com a psique humana?
Outro questionamento que faço, é: se esses “terreiros, terreiras, barracões, casas de religião, etc.” serão parte dos “equipamentos complementares do SUS”, os seus mantenedores terão algum subsídio do governo? Algum vínculo com o ente público?
Porque, ora, o inciso I do Artigo 19 da Constituição Federal proíbe qualquer relação de subsídio ou dependência entre o Estado e as religiões. O texto é cristalino e reproduzo abaixo, com destaque meu:
“É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.”
Se a proposta, por outro lado, diz respeito à “colaboração de interesse público”, mesmo assim está sujeita a questionamento, pois o inciso III do mesmo artigo proíbe o Estado de “criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.”
O trecho da Resolução, acima, não inclui as igrejas cristãs como espaços de cura, por exemplo, ou as sinagogas, mesquitas e tantos outros espaços religiosos de múltiplas religiões. Logo, parece haver uma clara violação do inciso III do Art. 19 da C.F, já que apenas “as manifestações da cultura popular dos povos tradicionais de matriz africana” são consideradas equipamentos “complementares do SUS”.
Cura religiosa e Estado
Que fique claro: os meus questionamentos, a aqui, não são de natureza religiosa, mas sim político-administrativa e científica. Entendo que cada religião tem o seu entendimento sobre cura, milagres e tratamentos, sendo isso parte da liberdade religiosa, algo garantido constitucionalmente no Brasil.
O problema, contudo, é quando o Estado, neste caso através de um Ministério, resolve reconhecer ou adotar determinado segmento religioso e seus locais de culto como equipamentos complementares da máquina pública, como dá a entender o trecho da Resolução 215 lido acima.
Por mais que a cura religiosa possa ser uma realidade para os que tem fé, e vemos muito isso nas igrejas, ela diz respeito ao campo da religião. O Ministério da Saúde, como um órgão técnico, deve se basear apenas em critérios científicos para propor as suas políticas, e não em crenças.
Assim sendo, por fim, o Estado deve reconhecer não uma, mas todas as religiões como promotoras de saúde, já que produzem impactos emocionais e psicológicos em seus fiéis. O que o Estado não pode é querer incorporar em sua máquina um tipo específico de prática que não pertence ao campo científico da saúde, mas sim das crenças.
Guiame.com.br/Marisa Lobo