O General Eduardo Villas Bôas, um dos principais especialistas em Amazônia, descreve em detalhes o caos vivido pelos ianomâmis. O assunto voltou à superfície nas últimas semanas, em razão dos relatos de desnutrição na comunidade ianomâmi de Surucucu, em Roraima, junto à fronteira com a Venezuela.
“Moram em maloca circular, fechada lateralmente por madeira e coberta com palha, em cujo interior as famílias delimitam seu espaço com redes em torno de um fogo”, conta Villas Bôas, referindo-se aos ianomâmis de Surucucu. “Nesse ambiente, respiram um ar carregado de fumaça, que, associado à inexistência de hábitos de higiene elementares, e submetidos ao clima relativamente frio e úmido peculiar da altitude da Serra de Surucucu, resulta num alto índice de doenças respiratórias, mormente entre as crianças. A expectativa de vida entre aquela população pouco ultrapassa os 30 anos.”
“Uma prática comum naquela comunidade é a do infanticídio. Como é próprio da cultura original, as índias se dirigem para o interior da mata quando vão dar à luz. Por força de hábito cultural, é comum o sacrifício do recém-nascido se ele apresentar alguma deformidade, ou se nascerem gêmeos, ou ainda se o primeiro filho for do sexo feminino.
Esse ‘relativismo cultural’ foi denunciado pela revista Veja, em sua edição de 16 de agosto de 2007, acompanhada da informação de que entre 2004 e 2006, cerca de 200 crianças de comunidades indígenas daquela região teriam sido sacrificadas, e que esta prática ocorre em pelo menos 13 etnias nacionais.
Na época, foi bastante divulgada a história da indiazinha Hakani, da etnia suruwaha, do sul do Estado do Amazonas, nascida em 1995. Por não se desenvolver como as outras crianças, foi condenada à morte. Acabou sendo salva por um casal missionário, que a levou da aldeia e depois adotou a menina. Esses fatos, denunciados pela revista Veja, podem ser confirmados no site que já foi hakani.org, hoje é atini.org.br, disponível na internet.
Reconhecemos a extrema importância que a preservação da identidade cultural indígena requer, em razão de sua fragilidade, quando em contato com outras culturas. A pergunta que se faz é: não teriam as ciências sociais desenvolvido alguma metodologia capaz de proporcionar àquelas populações um nível mínimo de hábitos que lhes permitam evoluir em sua qualidade de vida sem que necessariamente ocorra a perda da identidade cultural?
O que a realidade tem demonstrado é que a tentativa de manter intocados os universos culturais indígenas resulta em uma prática falaciosa, inviável e contraproducente, pois o contato acaba inexoravelmente acontecendo. Caso não seja assistido e orientado, ocorre por meio do descaminho ou de atividades ilícitas, ensejando, geralmente, o vício da embriaguez entre os homens, a prostituição entre as mulheres jovens, o garimpo irregular e a extração ilegal de madeiras.
Por outro lado, o tratamento dado à questão indígena em nosso país tem sido marcado por um forte viés geopolítico. Além da demarcação das reservas, não é proporcionado aos índios o desenvolvimento de atividades econômicas que lhes deem sustentação. Permanecem abandonados e é comum vê-los ameaçados em sua sobrevivência física e cultural.
Essa conjuntura fica muito clara quando se visita a comunidade Yanomami de Maturacá, aos pés do Pico da Neblina, poucos quilômetros ao sul da fronteira com a Venezuela. Os cerca de 1,6 mil habitantes, embora já não vivam em malocas, e sim em residência familiares, restringem seu consumo de proteínas ao que obtêm por meio da caça e da pesca, por não terem ainda alterado o traço cultural de não criar animais.
Trata-se de uma região em que os rios apresentam baixíssimo índice de piscosidade, e a caça já começa a rarear, exigindo dos homens vários dias de caminhada para obter um bom rendimento. O pouco que conseguem precisa ser moqueado (tipo de defumação realizada pelos índios), para que chegue em condições de consumo às famílias. Essa carência tende a se agravar, tanto pelo crescimento da população como pelo escasseamento natural da caça disponível.
Um dado importante a ressaltar é que aquela região tem seu bioma absolutamente preservado, não tendo até então sofrido nenhum tipo de dano pela ação de não índios. A tendência que se verifica é que, caso não se introduzam alterações nos hábitos regionais por meio de alguma atividade que lhes supram as necessidades, sérios problemas necessitarão ser administrados no médio prazo.
Ironicamente, a consequência do agravamento dessa situação produzirá argumentos que irão engrossar o coro dos que advogam em favor da manutenção das comunidades indígenas em situação de total isolamento, criando-se, assim, um círculo vicioso.
Por outro lado, não há limites físicos nem distâncias que impeçam o contato eventual entre índios e não índios, principalmente coletores de grande mobilidade, como os seringueiros e os garimpeiros. Nesses contatos fortuitos, é comum algum tipo de escambo, no qual, em troca de alimentos, o não índio oferece seus utensílios. Se for, por exemplo, uma panela, a índia vai com certeza incorporá-la aos seus hábitos, sem conhecer a necessidade de lavá-la. A consequência, em pouco tempo, será a ocorrência de uma inevitável epidemia de diarreia na comunidade.
Esses e outros numerosos exemplos, frequentemente testemunhados por quem tem algum tipo de contato com as comunidades indígenas, mostram as dificílimas condições de vida a que estão sendo relegadas aquelas populações. Essas condições dificilmente serão revertidas caso não se restabeleça, também em relação a esses brasileiros, sua condição de seres humanos, acima de ideologias ou de doutrinas de qualquer natureza.
É chocante, após conviver com essas realidades, constatar o quanto elas são distorcidas quando trazidas à opinião pública nacional. Rarissimamente são divulgadas manifestações por parte dos índios, se elas não estiverem alinhadas com os argumentos ideologicamente filtrados.
Resumindo: no afã de preservar a cultura, sacrificam-se as pessoas.”
Revista Oeste