Vidas femininas perdidas para a covardia não podem ser banalizadas

Em aproximadamente 60 dias, o Distrito Federal contabilizou oito assassinatos de mulheres por seus ex ou atuais companheiros. Nas vésperas do Dia Internacional da Mulher, relembrar as histórias delas é uma forma de não banalizar esse tipo de crime

Foto: Reprodução Redes Sociais

Mais do que uma estatística assustadora aos olhos da sociedade, dos especialistas e das autoridades, o crime de feminicídio destrói famílias e questiona a impunidade judiciária. O assassinato de mulheres — qualificado em situação de violência doméstica e familiar ou em razão do menosprezo ou discriminação à sua condição de gênero — aumentou em todo o país, segundo o relatório Violência contra Meninas e Mulheres, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Somente no primeiro semestre do ano passado, o Brasil bateu recorde: segundo o documento, em média, quatro mulheres foram assassinadas por dia entre janeiro e junho, totalizando 699 vítimas — 10% a mais do que o dado (631) de 2019 — ano pré-pandemia.

O Distrito Federal está entre as 13 unidades federativas com as mais altas taxas de feminicídio. Essa estatística não considera, ainda, as oito mulheres que, somente no período inicial deste ano — entre 1º de janeiro e 2 de março —, foram assassinadas. Elas eram jovens, algumas eram mães, e tiveram a existência interrompida em atos cometidos por homens que um dia elas amaram. Dos oito acusados que confessaram os crimes, um se matou e os demais estão presos, aguardando finalização de inquéritos, que, segundo a PCDF, correm em sigilo.

Fernanda, Mirian, Jeane, Giovana, Izabel, Simone, Letícia e Rayane são nomes que lamentavelmente figuram em lápides nos cemitérios locais. Nas fotos delas que foram divulgadas pela polícia, os rostos simbolizam paixões e sonhos que foram abortados e, por trás deles, há famílias que estão dilaceradas pela dor e com clamores por justiça.

A crueldade que atingiu essas vidas não devem ser banalizadas e esquecidas. Nesta reportagem, o Correio relembra a história de cada uma dessas mulheres, que, assim como tantas outras ao redor do país diariamente, foram vítimas da extrema covardia.

Fernanda
Na virada do ano, Fernanda Letícia da Silva, 27 anos, foi até a casa do namorado, Maxwel Lucas Rômulo Pereira de Oliveira, 32, na QNP 17 de Ceilândia. Durante a madrugada, Maxwel a enforcou até a morte. Após o crime, o assassino confessou o feminicídio e fugiu, mas se entregou à polícia dias depois. Assim como em inúmeros casos, Fernanda já havia registrado queixa de violência física contra o namorado em março de 2022, mas a vítima decidiu não solicitar as medidas protetivas de urgência.

Mirian
Um dia depois, em 2 de janeiro, a jovem Mirian Nunes, 26, foi brutalmente assassinada pelo marido, André Muniz, 52. Mirian estava em casa, na QNM 21, Conjunto L, em Ceilândia, quando foi estrangulada com um cinto. No momento do crime, a mulher estava com o filho, de um mês, no colo, fruto do relacionamento com o agressor. Além do recém-nascido, a vítima tinha outros dois filhos, de 8 e 6 anos. Ela chegou a denunciá-lo anteriormente em uma ocorrência ainda quando estava grávida. Na ocasião, ela teve os cabelos cortados por André e sofreu abusos sexuais, mas, algum tempo depois, decidiu reatar o relacionamento.

Jeane
Antes de morrer, Jeane Sena da Cunha Santos, 42, solicitou medidas protetivas contra o ex-companheiro, João Inácio dos Santos, 54, que a matou com um tiro, em 17 de janeiro, na Quadra 14 do Setor de Mansões do Park Way. Em seguida, João tirou a própria vida. Conforme consta no boletim de ocorrência, Jeane recebia ameaças constantes de morte pelo ex. Mas, mesmo com as medidas deferidas pela Justiça, a mulher decidiu reatar o relacionamento cerca de um mês antes de ser morta.

Giovana
Com apenas 20 anos, Giovana Camilly Evaristo Carvalho teve um fim trágico ao ser assassinada com dois tiros no rosto pelo namorado, Wellington Rodrigues Ferreira, 38, na QNN 20 de Ceilândia. O relacionamento conturbado entre a jovem e o agressor era nítido para familiares e amigos. Nas redes sociais, Giovana chegou a alterar o status de relacionamento para “complicado”. Os dois namoravam há cerca de 10 meses. Depois de ferida, a garota chegou a ser encaminhada ao hospital, mas não resistiu. Já o acusado, foi preso em flagrante por policiais militares no condomínio onde morava, em Taguatinga. À polícia, ele disse que o crime ocorreu por causa de uma discussão de drogas.

Izabel
De forma covarde, o assassino de Izabel Guimarães, 36, o ex-marido dela, Paulo Roberto Moreira, 38, invadiu a casa da vendedora e atirou contra o rosto dela, em 4 de fevereiro. O crime foi cometido na frente da filha do casal, de 10 anos. Segundo familiares e amigos, o relacionamento entre o casal também era conturbado, à base de ameaças e brigas. Dias antes, Izabel decidiu pôr fim à relação e até trocou a fechaduras do portão, mas nada impediu a barbárie. Paulo, que era atirador desportivo, foi preso dias depois do crime depois de se entregar à polícia.

Simone
A sexta vítima de feminicídio foi Simone Sampaio, 40. A mulher chegou em Brasília no final de dezembro do ano passado, com as duas filhas, de 15 e 9 anos. De acordo com o relato de pessoas próximas à vítima, Simone saiu do Espírito Santo para ficar longe do ex-companheiro, João Alves Catarina Neto. Na manhã de 13 de fevereiro, os dois foram deixar a filha adolescente na escola e, na volta, discutiram. Nesse momento, o agressor desferiu várias facadas na vítima no meio da rua. João Alves foi preso em flagrante por um policial militar, que estava de folga e passava no local.

Letícia e Rayane
Na última quinta-feira, o DF registrou o sétimo e oitavo feminicídios do ano. Letícia Barbosa Mariano, 25, e Rayane Ferreira de Jesus, 18, foram covardemente assassinadas pelos namorados. Os autores — identificados como Guilherme Nascimento, 29, e Jobervan Junior Lopes, 21, respectivamente — acumulam antecedentes por violarem a Lei Maria da Penha.

Letícia e Guilherme estavam juntos há cerca de sete meses e viviam uma relação conturbada e agressiva, de acordo com familiares. A mulher foi espancada até a morte no banheiro do apartamento do agressor, em Taguatinga Norte. O homem foi preso, horas depois, pela Polícia Civil e confessou o assassinato. Na delegacia, anunciou que matará o amigo da namorada quando sair da cadeia. Letícia chegou a denunciar o rapaz à polícia e tinha medida protetiva contra ele. Ela deixou um filho de 3 anos.

No Caub, Riacho Fundo 2, Rayane Ferreira foi estrangulada pelo companheiro, Jobervan. Em seguida, o autor do crime fugiu com o filho do casal, de apenas um ano. A criança foi encontrada pela polícia na casa do avô paterno, horas após o assassinato. O autor foi preso em flagrante.

Combate ao feminicídio: responsabilidade de todos
Para proteger as mulheres e dar um basta a esta violência, a sociedade precisa se unir. Nesta terça-feira (7/3), o Correio Braziliense promove o seminário “Combate ao feminicídio: responsabilidade de todos”.

Entre as convidadas, confirmaram presença a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, a governadora em exercício do Distrito Federal, Celina Leão (PP), a ministra do Superior Tribunal Militar (STM) Maria Elizabeth Rocha, a juíza do TJDFT Rejane Jungbluth Suxberger e a presidente da Comissão de Enfrentamento à Violência Doméstica contra a Mulher da OAB/DF, Cristina Tubino.

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, estará no encerramento.

Em três painéis, os palestrantes vão traçar caminhos para conter o avanço desse tipo de crime. “A palavra deste mês, além de homenagem, precisa ser ação. Não combateremos esta onda de violência contra as mulheres se atuarmos apenas de forma reativa a cada episódio de morte”, disse, ao Correio, a deputada distrital Doutora Jane (Agir), que também é delegada de polícia e estará presente no palco do debate.

“As políticas públicas devem ser continuadas e envolver desde o melhor e mais eficaz atendimento na esfera policial até a criação de condições para que as mulheres se fortaleçam pela formação e oportunidades de emprego, aquisição de moradias, vagas em creches, dentre outras”, defende a parlamentar.

O Correio Debate será mediado pelas jornalistas Adriana Bernardes e Ana Maria Campos, a partir das 14h, e poderá ser acompanhado, em tempo real, pelos canais oficiais.

Mecanismos multidisciplinares
A violência doméstica é muito complexa e profunda, por isso, os mecanismos para evitar ou acabar com esses crimes devem ser diversos e encarados de forma multidisciplinar para que haja efetividade.

A denúncia é a primeira etapa da esfera jurídica e um passo muito importante. É a porta de entrada principal que permite que o Estado possa ter ciência da situação e tomar as providências cabíveis.

Contudo, não quer dizer que o ciclo da violência doméstica se encerra ali, naquele momento, de forma automática. Tanto que, às vezes, a vítima já registrou vários boletins de ocorrência antes do rompimento desse ciclo violento. É necessário que essa mulher também seja amparada em outras áreas. Por exemplo, se a vítima depende economicamente do agressor, é importante encontrar uma solução para que esse fator não contribua com a volta da relação por necessidade. Se a violência envolve manipulação e anos de dependência, é essencial que a vítima seja acompanhada por profissionais da psicologia que realizam um trabalho de extrema importância. Qualquer fator que contribua para o fortalecimento dessa mulher, e que forneça conhecimento, é importante.

A prevenção, o apoio das pessoas próximas e o conhecimento dos direitos são essenciais.

Quanto mais se fala no assunto, quanto mais cedo se aborda essa temática, mais a prevenção será efetiva e os índices diminuirão. Importante ressaltar que, além da punição penal, é muito importante também a prevenção e a abordagem da temática para agressores. Não adianta trabalhar de um lado só, a abordagem tem que ser simultânea para que haja um real combate contra esse tipo de violência.

O combate à desinformação também é um elemento de extrema importância para diminuir a revitimização e o julgamento social que, infelizmente, mulheres ainda sofrem, apesar de serem as vítimas.

Manon Garcia, sócio-fundadora do Instituto Retomar (Instituto de combate e prevenção à violência contra a mulher)

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