Portaria do governo diz que SUS é “machista e racista” e prega Estado ateu

Uma portaria do governo Lula (PT) assinada por Nísia Trindade, ministra da Saúde, com o objetivo alegado de promover a equidade de gênero e de raça diz que a divisão do trabalho implementada no Sistema Único de Saúde (SUS) é "machista e racista".

Foto: Marcelo Camargo

O documento, que vigora desde o último dia 7, também confunde a laicidade do Estado com o laicismo, pedindo uma política “independente de princípios religiosos”. A laicidade é um princípio constitucional segundo o qual o Estado deve ser neutro em relação às religiões, sem privilegiar nem coibir qualquer uma delas. O laicismo, por sua vez, é a ideia de que as visões religiosas devam ser excluídas do debate público e permitidas somente na esfera privada, o que é inconstitucional, porque, na prática, privilegia o ateísmo.

Afonso Celso de Oliveira, especialista em Direito Civil e membro do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR), explica que o Estado “não pode nem privilegiar nem embaraçar” a prática de nenhuma religião. “O artigo 19 da Constituição, no seu inciso primeiro, destaca que ‘é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios’ não só ‘estabelecer cultos religiosos ou igrejas’ – ou seja, dar preferência a uma forma de religião, subvencioná-la –, como também é vedado ‘embaraçar-lhes o funcionamento’. Ou seja, o contrário também é vedado. É vedado você dar preferência, mas também é vedado você embaraçar o funcionamento”, observa.

Oliveira lembra ainda que “a separação entre Estado e religião não significa que o Estado deva ser ateu ou agnóstico”. “Através de uma portaria, de uma canetada que é inconstitucional, estão demonstrando claramente uma posição laicista que é tentar formar um Estado ateu, um Estado agnóstico”, critica.

Para o advogado Miguel Vidigal, diretor da União dos Juristas Católicos de São Paulo, a portaria é mais uma iniciativa política recente para “afastar cada vez mais a influência da religião na vida pública do país”. “É um contrassenso, na medida em que uma sociedade plural e democrática, como esses movimentos dizem almejar, deveria, ao contrário, tentar abarcar todos ou ao menos uma grande parte dos princípios seguidos por todos os nossos cidadãos”, comenta.

Para ele, a “onda ateia e persecutória” não é nova e “tem seu berço na Revolução Francesa, que, em nome da ‘liberdade, igualdade e fraternidade’, mandava pessoas à guilhotina sem o menor escrúpulo”. “As páginas da história nos ensinam que, sempre que a religião foi colocada de lado, a ditadura foi instaurada. Isso se deu na Roma Antiga, se deu na Alemanha Nazista, se deu e se dá ainda nos países comunistas… A esperança que fica é de que os brasileiros saberão dar um basta nessa onda antirreligiosa com viés ditatorial e voltaremos a receber os bons influxos que a religião nos trouxe até hoje.”

Portaria para o SUS radicaliza no discurso woke
A portaria é, até o momento, a medida do Ministério da Saúde que mais radicaliza no discurso woke. Termos da nova cultura identitária que não costumavam figurar nem mesmo nos governos anteriores do PT são usados em profusão. Para parlamentares de direita que têm atacado o texto, há risco de institucionalização da ideologia de gênero no SUS.

Alguns trechos são caracterizados por um nível de indigência intelectual inédito em documentos oficiais, com redação abstrusa e repleta de argumentos ideológicos. Por exemplo:

“A identificação de uma pessoa parte, exclusivamente, de sua declaração frente ao gênero, existindo uma gama de identidades conhecidas. Elas podem ser declaradas de diferentes formas. Entende-se que uma pessoa cisgênero é aquela que se identifica com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer, enquanto a pessoa transgênero é aquela que se identifica com o gênero oposto ao atribuído no nascimento. Esse é o caso, por exemplo, de uma mulher transgênero, a quem foi atribuída a identidade masculina, porém, que se identifica como mulher.”
“O gênero é um dos princípios de organização social: organiza identidades e autoconceitos (ex: autopercepção de saúde); estrutura interações sociais (ex: discriminação, práticas de cuidado); organiza estruturas sociais e embasa a distribuição de poder e recursos (ex: controle sobre o trabalho) (Wharton, 2009). Refere-se a comportamentos, performatividades e papéis que uma dada sociedade, em um dado momento, considera coerente para homens e mulheres. Esses papéis são socialmente construídos, e, hegemonicamente sustentados por uma perspectiva biológica. Pode-se dizer que gênero é o modo ‘como os sexos [mulher ou homem] são pensados e como as qualidades sexuais vêm a ser aplicadas a outras formulações’ (Strathern, 2014).”
O documento ainda pode ameaçar a liberdade de expressão dos profissionais da saúde em seu ambiente de trabalho, ao estabelecer como diretriz do SUS “adotar linguagem que promova equidade” e evitar “termos machistas e patriarcais” no cotidiano institucional dos estabelecimentos de saúde do governo. Outra orientação é que o SUS deve “contribuir para o enfrentamento do machismo cultural”. O texto não define o que é machismo cultural.

Em uma publicação recente no Instagram, a deputada federal Chris Tonietto (PL-RJ) afirmou que a portaria do Ministério da Saúde “institucionaliza a ideologia de gênero em todo o Brasil”. “O dinheiro do pagador de impostos vai ser empregado por meio dessa portaria para propagar a ideologia de gênero em todo o Brasil. E eles ainda vão fazer um monitoramento para saber se de fato esse programa está sendo executado e está sendo bem empregado. É uma das maiores aberrações que eu já vi”, comentou.

Gazeta do Povo

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