Do início ao fim da carreira, Pelé, morto ontem, às 15h27, aos 82 anos, em decorrência de falência múltipla dos órgãos causada pelo avanço de um câncer no intestino, sempre foi Pelé, suprassumo da excelência. Dizer, por exemplo, que Nadal, Federer e Djokovic disputam o posto de ‘Pelé do Tênis’ é não entender que o mineiro de Três Corações não competiu com ninguém.
Hors concours, Pelé simplesmente foi o melhor e maior esportista da história, reconhecido pelos seus mais de mil gols e vencedor de todos os títulos importantes como protagonista. A comparação usando o nome dele — que virou adjetivo em forma de homenagem (o ‘Pelé da Medicina’, o ‘Pelé da Música’, o ‘Pelé da F-1’) — sempre é imprecisa e exagerada. Como Pelé, apenas Pelé e somente Pelé.
Ao longo da trajetória, Pelé foi coroado. No entanto, dizer que ele foi um rei também soa injusto. Qual o grande atributo de um monarca? No geral, nenhum. Ao rei basta nascer, estar na linha sucessória e herdar o trono. O Charles III, a título de exemplo, o qual assumiu a monarquia britânica: com todo respeito que merece, é sujeito desinteressante, sem carisma, sem nenhuma marca indelével.
Mesmo sendo figura superlativa em relação a qualquer integrante de família real — até o
francês Luís XIV, o ‘Rei Sol’, seria ofuscado pelo mineiro, assim como foi a simpática rainha Elizabeth II, em encontro com o craque em 1968 —, Pelé ganhou título de nobreza: o ‘Rei do Futebol’, que virou aposto e quase nome próprio ao longo da sua vida e assim será também agora, posterior a ela.
O título de Rei
Quando tinha apenas 17 anos e era conhecido por poucos, antes mesmo de ganhar a primeira
de três Copas do Mundo e de completar duas centenas de gols, o cronista Nelson Rodrigues
reivindicava o trono para o garoto nascido em 23 de outubro de 1940, no Sul de Minas Gerais,
que despontava no futebol brasileiro.
“Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: — dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis”, escreveu o jornalista, na Manchete Esportiva, em 8 de março de 1958. “Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope”, acrescentou. A crônica foi escrita quando Nelson Rodrigues presenciou quatro gols de Pelé, vestindo a camisa do Santos, contra o América-RJ.
Depois disso, ele não teve dúvidas. Com seu estilo literário, conseguiu pronunciar a História. Talvez tenha sido o primeiro a dizer que Pelé já era Pelé. “O que nós chamamos de realeza é, acima de
tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento”, escreveu Nelson Rodrigues.
O cronista alertou que o craque, aos 17 anos, já sabia que era o melhor. Não o melhor ponta, o
melhor meia, o melhor atacante. Pelé tinha plena consciência que era o melhor em todas as posições. “Tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe perguntaram: —
“Quem é o maior meia do mundo?” Ele respondeu, com a ênfase das certezas eternas: — “Eu.” Insistiram: — “Qual é o maior ponta do mundo?” E Pelé: — “Eu.” Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir.
Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção que ninguém reage, e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de
ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé”, garantiu o cronista.
Doença
O estado de saúde de Pelé começou a se deteriorar com a descoberta de um câncer no intestino em agosto de 2021, quando recebeu o diagnóstico de um tumor maligno no cólon. Ele passou por cirurgia no hospital Albert Einstein, em 4 de setembro de 2021, para a retirada do tumor. Chegou a ser transferido para uma UTI por causa de problemas respiratórios.
Naquele momento, Pelé iniciou o processo de quimioterapia e ficou 15 dias internado em dezembro de 2021.Em janeiro, metástases foram diagnosticadas em diferentes órgãos do corpo, como fígado e pulmão.
Em fevereiro de 2022, Pelé retornou ao hospital paulista para novas sessões de quimioterapia, quando os médicos observaram uma infecção urinária. O quadro melhorou e, por isso, ele foi liberado naquele mês.
Pelé foi internado novamente em novembro de 2022 com quadro de anasarca (inchaço generalizado), síndrome edemigênica (edema generalizado) e insuficiência cardíaca descompensada.
Das origens em MG ao futebol
Uma anotação à caneta tinteiro em frente ao nome Edson Arantes do Nascimento no livro de
batismo da Matriz Sagrada Família de Três Corações não deixa dúvida: “Este é Pelé. Campeão
mundial de futebol — 1958 — Bicampeão em 1962”. A observação é do monsenhor José Guimarães Fonseca, que morreu antes do tricampeonato no México’1970, pároco que batizou, em abril de 1941, o maior orgulho desta cidade do Sul de Minas e majestade eterna dos gramados do mundo inteiro: o Rei Pelé, que na sextafeira completará 80 anos.
Pelé nasceu em 23 de outubro de 1940 – embora a certidão de nascimento, por motivo até
hoje não explicado, registre o dia 21 –, em Três Corações, para onde o pai, João Ramos do Nascimento, o jogador Dondinho, natural da vizinha Campos Gerais, foi servir no 4º Regimento de Cavalaria Divisionário do Exército.
Estabelecido na cidade e com emprego na rede ferroviária, Dondinho conheceu Celeste,
filha de um vendedor de lenha, com quem se casou e teve três filhos, o primeiro deles batizado de Edson em homenagem a Thomas Edison, inventor da luz elétrica.
Por três anos, o garoto que viria a ter o apelido mais conhecido do mundo foi chamado pelos familiares de Dico. A mudança, a contragosto do menino que odiava ser chamado de Pelé, veio em 1943, quando Dodinho foi contratado pelo Vasco da Gama de São Lourenço, também no Sul de Minas, que contava com o goleiro Bilé.
Dico o idolatrava e dos gritos quase onomatopeicos de “Plé, Plé, Plé”, os outros garotos passaram a chamar-lhe de Pelé. A família Arantes do Nascimento – que crescera em número com o nascimento de Jair (o Zoca) e Maria Lúcia – trocou a pequena casa à Rua 13 (hoje rebatizada em homenagem a Pelé)
em definitivo em 1945, quando Dondinho recebeu uma boa proposta do Bauru Esporte Clube, o BAC. No interior paulista, em companhia do pai, Pelé trocava o parquinho pelos gramados. Ingressou no Sete de Setembro, no Baquinho, as categorias de base do Bauru, e despertou o interesse de olheiros e empresários. Em 1956, vencida pela insistência, Celeste autorizou o ex-atacante Waldemar de Brito a levar Pelé ao Santos.
CB