Álcool e direção deixam rastro de dor em famílias destruídas

Efetivo maior nas fiscalizações das vias e punições para infratores podem colaborar para a redução de tragédias

Foto: Repórter do Sertão

Presente em metade dos sinistros de trânsito pelo mundo, o álcool segue como um dos principais componentes da violência nas vias da capital federal. Dados do Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran-DF) apontam um aumento de 40,5% nas autuações por alcoolemia em Brasília. Segundo o diretor científico da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), Flávio Adura, está muito bem documentado que o álcool está estreitamente ligado às mortes por acidentes de trânsito. “Em quase metade das sinistralidades nas vias, se constata a presença de alcoolemia”, destaca o especialista.

De janeiro a julho deste ano foram 126 mortes no trânsito de Brasília. Perdas que não podem ser analisadas sem considerar os 19.429 condutores autuados, até julho, por dirigirem sob o efeito de álcool, conforme levantamento feito pelo Detran-DF, Departamento de Estradas de Rodagem (DER-DF) e pela Polícia Militar (PMDF). Dividindo pelo total dos dias entre o primeiro e o sétimo mês de 2022, a média é de 92 infrações diárias.

Frustração e saudade
O número de flagrantes cresce ano a ano e as autoridades têm se mostrado incapazes de coibir a infração com alto risco de fatalidade nas vias. Em 2021, foram 13.828 ocorrências no mesmo período, 5.601 casos a menos.

Vilma Pires dos Santos, 59 anos, convive com a dor que é perder alguém querido por causa de um motorista alcoolizado. Em 21 de maio, Renan Pires de Araújo, 33, seu filho, morreu depois de ser atingido por Jessivan Leal Araújo, 30, na DF-489. A vítima trafegava de motocicleta pela rodovia quando sofreu o impacto. O responsável pela colisão foi capturado pela PMDF e preso, em flagrante, por homicídio culposo e embriaguez ao volante. O teste do bafômetro acusou 0,40 mg/l. Resultado acima de 0,34 mg/L, que é considerado crime de trânsito. Passados quase três meses, a mãe de Renan afirma que o filho é lembrado quase todos os dias, por todos. “Ele era uma pessoa muito presente”, lembra.

Para a tia de Renan, Elane Pires, 45, a dor ainda está bastante presente na família. “É muito triste saber que uma pessoa foi morta, enquanto estava vindo do trabalho, por alguém que estava dirigindo de uma forma perigosa e irresponsável”, lamenta. “Ainda estamos muito frustrados, por não termos mais o Renan entre a gente. Ele era alguém de extrema importância para todos os familiares e ainda faz muita falta no nosso convívio”, atesta Elane. A servidora pública destaca que a tragédia ocorrida com o seu sobrinho não foi apenas um sinistro de trânsito. “No caso do Renan, foi uma situação em que o autor desobedeceu os chamados da polícia, além de estar em alta velocidade e embriagado”, recorda.

Fim da impunidade
O perito médico legista aposentado do Instituto Médico Legal (IML) e professor de medicina legal da Universidade de Brasília (UnB) Malthus Galvão destaca que ingerir álcool causa problemas momentâneos no sistema nervoso central. “Prejudica as capacidades necessárias para a condução de veículos automotores, como: atenção, coordenação motora, velocidade de reflexos, capacidade de cálculo, visão, audição e tantas outras”, detalha.

O especialista lembra que todos têm alguma responsabilidade para uma mudança de cultura no trânsito. Para Malthus, é necessário que a população se conscientize, tanto para não beber e dirigir, quanto para denunciar quem faz isso. Além disso, o professor destaca que é preciso uma ação sinérgica entre as forças de segurança do DF. “O que funciona é a certeza da punição. Ao invés de gastar com as campanhas, seria melhor colocar um efetivo maior nas ruas para fiscalizar: pequenas blitz, em vários locais diferentes”, frisa o perito aposentado.

Vida interrompida
Na última terça-feira, Lucas Cavalcante Andrade, 10, morreu após o carro em que estava sofrer uma colisão e capotar na EPNB. O responsável pela batida foi o policial militar Carlos Roberto de Carvalho Neto, que foi afastado das ruas por conta do sinistro. Chama atenção o procedimento dos militares da PMDF que atenderam a ocorrência. O sinistro ocorreu por volta da 1h30 da madrugada, mas na abordagem policial o praça se recusou a fazer o teste do bafômetro e foi levado para 27ª Delegacia de Polícia (Recanto das Emas).

Na delegacia, foram mais 2h até que Carlos Roberto fosse encaminhado para exame clínico no IML por volta das 5h. Segundo o delegado da 27ª DP, Frederico Teixeira, a demora aconteceu pois a equipe da Polícia Militar registrou o auto de infração pela recusa ao teste do bafômetro, às 3h15. “Ressalta-se que a referida equipe não realizou o auto de constatação de sinais de embriaguez no local”, destacou o delegado. Questionada sobre os fatos na época, a Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) defendeu que a equipe seguiu o protocolo, emitindo o laudo de recusa com base nos sinais físicos de embriaguez do condutor.

Entretanto, o advogado criminalista e professor de direito do Ceub Víctor Minervino Quintiere discorda do que foi dito pelo delegado da 27ª DP, e afirma que os militares erraram nos procedimentos adotados. Para o especialista, os exames de alcoolemia, relacionados ao PM, deveriam ter sido feitos no local. “Até porque o álcool vai sendo diluído no sangue ao longo das horas. Então, quanto mais rápido fizer esse exame, maior a precisão da quantidade eventual da substância no sangue da pessoa”, destaca.

Lembranças presentes
A morte de Lucas traz dolorosas lembranças para Luiza Davison, 24 anos. Há 16 anos, tal como o menino que morreu, ela e a família foram vítimas de um sinistro de trânsito. Em 19 de agosto de 2006, em casa, aos 8 anos, recebeu a notícia de que o pai, Pedro Davison, 25, havia falecido após ser atropelado enquanto andava de bicicleta no Eixão Sul por um motorista embriagado. Pedro era biólogo e tinha uma vida inteira pela frente. Luiza sobreviveu, mas a dor e a saudade da figura paterna a acompanham desde então.

O atropelamento chocou os moradores da capital e teve grande repercussão. O ciclista morreu no dia do aniversário da filha e a quatro dias da festa de formatura no curso de biologia da Universidade de Brasília (UnB). “A gente está falando de um motorista embriagado trafegando em uma via que não era liberada para carros, muito acima da velocidade. É uma soma de decisões imprudentes e isso acabou tirando a vida do meu pai, de alguém que a gente amava tanto”, destaca a analista de relacionamento com o cliente.

Presença, energia e alegria: é assim que Luíza define e se lembra do pai. Segundo ela, a família acha que os dois são iguais. “É impressionante como, mesmo com poucos anos de convivência, eu peguei vários tipos de jeitos, trejeitos, manias, enfim, o traço da personalidade dele”, conta. A analista diz se sentir conectada à Pedro, principalmente quando anda de bicicleta, paixão que o biólogo e ela cultivam em comum. Ela comenta que, quando pedala pelas ruas de Brasília, pensa em quantas vezes o pai já deve ter passado por alguns lugares. “Uso uma bicicleta que ele usava totalmente por apego e eu me sinto muito conectada a ele por meio da bicicleta e da pauta de luta pela paz no trânsito e mobilidade ativa. Tudo isso faz eu sentir que ele ainda está vivo e que a voz dele ecoou”, emociona-se.

Quatro anos após o acidente, o contador Leonardo Luiz da Costa foi condenado por homicídio doloso com dolo eventual (quando o autor assume o risco de matar) a 6 anos de prisão no regime semiaberto. Atualmente, Leonardo encontra-se em liberdade. “É muito doloroso ver que esse tipo de situação não para de acontecer, que a gente ainda perde pessoas no trânsito, que tem outras famílias que perdem entes queridos por conta da decisão imprudente de pessoas ignorantes”, enfatiza Luiza. Para ela, a justiça não foi feita no caso do pai. “A sensação é de impotência. Sinto que a gente está no lado fraco dessa luta”, conclui.

Artigo
CHEGA!

David Duarte Lima
Presidente do Instituto Brasileiro de Segurança no Trânsito

Lucas tinha 10 anos e sonhava ser médico, pensava em salvar vidas. Na última terça-feira, um carro dirigido por um motorista imprudente acabou com o sonho. Pelos amassamentos dos veículos, é possível inferir que o agressor estava em velocidade excessiva quando bateu na traseira e provocou o capotamento do carro onde Lucas estava. Matou a criança, destruiu uma família, inoculou a mais infinita dor nos pais.

O rapaz que provocou a tragédia tem 26 anos, é policial militar, acabara de sair de um bar, levava uma garrafa de cerveja no console do carro. Vídeos feitos após a colisão mostram que o rapaz andava de forma cambaleante e tinha um comportamento compatível com quem havia bebido.

Dirigir sob efeito de álcool reduz os reflexos, o condutor reage tardiamente. Em circunstâncias de risco, a rapidez da decisão e da consequente ação fazem toda diferença para evitar um acidente. Dirigir após beber pode terminar mal: o álcool falseia a noção de distância, provoca gestos imprecisos, dificulta o estado de atenção e vigilância, prejudica o foco da visão e retarda as reações, ingredientes suficientes para um desastre. Outro efeito do álcool é sobre o comportamento. Dirigir com algumas doses na cabeça estimula o condutor a afundar o pé direito no acelerador, negligenciar riscos, ignorar a sinalização, desrespeitar os outros.

Além dos motoristas alcoolizados há outros ingredientes. No Brasil, a formação do condutor é deficiente, o espaço de circulação precário, a fiscalização é insuficiente e feita com técnicas rudimentares. Quando se trata de trânsito, a Justiça é um poço de impunidade. Na administração, vale a frase do saudoso Roberto Scaringella: “No trânsito, quem entende não manda e quem manda não entende”. O corolário são milhares de mortes e milhões de feridos. Muitos têm lesões irreversíveis e carregarão as marcas da tragédia para sempre.

Provavelmente o rapaz de 26 anos cumprirá uma pena ridícula. Por isso estamos correndo atrás do prejuízo. E que prejuízo! Eu calculo que os acidentes de trânsito custam cerca de 70 bilhões de reais por ano à sociedade. Uma quantia irrisória, comparada à indecência viária quotidiana, aos sonhos destruídos, à infinita dor de quem fica. Nesse “acidente”, uma criança perdeu a vida, o país um futuro médico. Os pais terão anos de desespero e dor. O assassino fica com a liberdade. A mobilidade é uma necessidade básica. Precisamos de uma tragédia para exercer o direito de ir e vir? É hora de reagir. Chega!

 

Artigo
CHEGA!

David Duarte Lima
Presidente do Instituto Brasileiro de Segurança no Trânsito

Lucas tinha 10 anos e sonhava ser médico, pensava em salvar vidas. Na última terça-feira, um carro dirigido por um motorista imprudente acabou com o sonho. Pelos amassamentos dos veículos, é possível inferir que o agressor estava em velocidade excessiva quando bateu na traseira e provocou o capotamento do carro onde Lucas estava. Matou a criança, destruiu uma família, inoculou a mais infinita dor nos pais.

O rapaz que provocou a tragédia tem 26 anos, é policial militar, acabara de sair de um bar, levava uma garrafa de cerveja no console do carro. Vídeos feitos após a colisão mostram que o rapaz andava de forma cambaleante e tinha um comportamento compatível com quem havia bebido.

Dirigir sob efeito de álcool reduz os reflexos, o condutor reage tardiamente. Em circunstâncias de risco, a rapidez da decisão e da consequente ação fazem toda diferença para evitar um acidente. Dirigir após beber pode terminar mal: o álcool falseia a noção de distância, provoca gestos imprecisos, dificulta o estado de atenção e vigilância, prejudica o foco da visão e retarda as reações, ingredientes suficientes para um desastre. Outro efeito do álcool é sobre o comportamento. Dirigir com algumas doses na cabeça estimula o condutor a afundar o pé direito no acelerador, negligenciar riscos, ignorar a sinalização, desrespeitar os outros.

Além dos motoristas alcoolizados há outros ingredientes. No Brasil, a formação do condutor é deficiente, o espaço de circulação precário, a fiscalização é insuficiente e feita com técnicas rudimentares. Quando se trata de trânsito, a Justiça é um poço de impunidade. Na administração, vale a frase do saudoso Roberto Scaringella: “No trânsito, quem entende não manda e quem manda não entende”. O corolário são milhares de mortes e milhões de feridos. Muitos têm lesões irreversíveis e carregarão as marcas da tragédia para sempre.

Provavelmente o rapaz de 26 anos cumprirá uma pena ridícula. Por isso estamos correndo atrás do prejuízo. E que prejuízo! Eu calculo que os acidentes de trânsito custam cerca de 70 bilhões de reais por ano à sociedade. Uma quantia irrisória, comparada à indecência viária quotidiana, aos sonhos destruídos, à infinita dor de quem fica. Nesse “acidente”, uma criança perdeu a vida, o país um futuro médico. Os pais terão anos de desespero e dor. O assassino fica com a liberdade. A mobilidade é uma necessidade básica. Precisamos de uma tragédia para exercer o direito de ir e vir? É hora de reagir. Chega!

O que diz a lei?
De acordo com o Código

de Trânsito Brasileiro:

» Art. 165 — Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:

Infração — gravíssima;

» Penalidade — multa de R$ 293,47 (dez vezes), ou seja, R$ 2.934,70

e suspensão do direito de

dirigir por 12 meses.

» Medida administrativa — recolhimento do documento de habilitação e retenção do veículo, observado o disposto no § 4o do art. 270 da Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997 — do Código de Trânsito Brasileiro.

» Parágrafo único. Aplica-se em dobro a multa prevista no caput, ou seja, R$ 5.869,40, em caso de reincidência no período de até 12 meses.

» De acordo com o CTB, quem

recusa submeter-se ao teste

do etilômetro está sujeito às mesmas penalidades acima.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CB

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