Até quando o feminicídio? O drama das famílias destruídas pelo crime

Ontem, mais uma mulher foi morta pelo companheiro na capital federal. Filhos do casal saíram de casa pedindo ajuda

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Foto: Ed Alves

A cena de duas crianças correndo e pedindo por socorro, enquanto a casa delas pegava fogo, no meio da noite, dificilmente será esquecida pelos moradores de Sobradinho. Ontem, dentro do imóvel, os corpos dos pais da menina de 10 e do menino de 7, eram consumidos pelas chamas após uma briga entre o casal. A polícia apura o crime como feminicídio seguido de suicídio. O motorista Sérgio Avelino, 45 anos, é suspeito de ter matado a auxiliar administrativa Ana Paula Alves, 33, e se matado em seguida. Ele cumpria prisão domiciliar pela morte de outra namorada, esfaqueada em 2006, em Planaltina.

Se confirmada a suspeita, as crianças passarão a integrar a triste estatística dos órfãos do feminicídio que, nos últimos sete anos, deixou 258 crianças, adolescentes e jovens sem a possibilidade de crescer sob os cuidados da mãe.

Os corpos de Sérgio e Ana Paula estão no Instituto de Medicina Legal do DF para perícia. Sabe-se que o Corpo de Bombeiros (CBM-DF) foi acionado, na madrugada de quinta, para conter um incêndio em uma casa, no Conjunto G da quadra. Após quase 25 minutos de combate às chamas e procedimento de rescaldo, os militares encontraram dois corpos queimados no quarto do casal. O cômodo era revestido por cerâmica, o que pode ter facilitado a propagação do fogo, de acordo com a apuração policial.

As investigações, conduzidas pela 13ª Delegacia de Polícia (Sobradinho), constataram que Ana Paula estava com as vísceras expostas e o punho fraturado. Sérgio não apresentava nenhuma lesão aparente, além disso, uma barra de ferro foi encontrada ao lado dos cadáveres. Antes do crime, vizinhos relataram à polícia ter ouvido uma discussão. “Feito o levantamento, constatamos que o casal nunca havia registrado nenhuma ocorrência. Então, é difícil dizer se vivia em perfeita harmonia. O fato é que nunca foi trazida nenhuma desavença ao conhecimento da delegacia”, ressaltou Hudson Maldonado, delegado-chefe da 13ª DP.

Ao Correio, moradores disseram que os filhos do casal saíram da casa desesperados, antes mesmo do incêndio, e começaram a pedir ajuda para os vizinhos. “Vi a movimentação na rua pelas câmeras de segurança e, quando saí, tinha vários carros dos Bombeiros e as crianças estavam sentadas no meio-fio, em frente à casa”, detalhou uma mulher, que preferiu não se identificar.

Condenação
Ana Paula nasceu em Brasília, e Sérgio em Santa Helena de Goiás. Os dois mantinham uma relação de cerca de 12 anos e moravam de aluguel, em Sobradinho, desde agosto de 2021, quando se mudaram para a casa. Uma testemunha, que preferiu não se identificar, afirmou que até dezembro do ano passado não havia percebido desavenças entre o casal. “Acredito que, em janeiro, começaram as brigas”, frisou. Familiares também disseram não desconfiar que havia algo errado.

Antes de se relacionar com Ana, o motorista foi condenado e cumpria prisão domiciliar em razão de um homicídio cometido em 2006, contra a namorada da época, em Planaltina. “Ele matou a companheira com golpes de faca, deixando, inclusive, cravada no peito da vítima”, destacou o delegado Maldonado. O caso não foi enquadrado como feminicídio porque a tipificação dessa modalidade de crime só ocorreu em 2015. Apesar da violência do crime, Sérgio cumpria prisão domiciliar. “Partindo daquele princípio legal da ressocialização e da reintegração, ele estava em casa e findando o cumprimento da sua pena”, acrescentou.

A volta ao convívio em sociedade durava nove anos, Sérgio trabalhava como motorista, enquanto Ana Paula era auxiliar administrativa. Os investigadores, no entanto, não souberam confirmar se os dois eram casados ou apenas companheiros, pois os familiares não tinham condições de prestar depoimento.

Uma das irmãs de Ana Paula usou as redes sociais para lamentar a morte da familiar. Na postagem do Instagram, ela escreveu: “Te amo além do infinito. Que Deus te receba com toda alegria que você tinha. Irmã, estou aqui cuidando dos meninos.” Em uma foto tirada em família, a mulher desabafou: “Sempre fomos um pelo outro. Um covarde ceifou sua vida, com uma crueldade que você não merecia.”

Órfãos do feminicídio
No momento, os filhos do casal estão sob os cuidados de familiares, mas o Conselho Tutelar avaliará a situação dos menores que, de um dia para o outro, perderam os principais referenciais de estabilidade e afeto.

Dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF) mostram que, entre março de 2015 e fevereiro deste ano, do total de filhos que perderam a mãe para o feminicídio, 157 são menores de idade. A maior parte (32,48%) está entre recém-nascidos e crianças de até quatro anos; 29,3% são meninos e meninas de cinco a nove anos; e 28,66%, são adolescentes com idades de 13 a 17 anos.

Em relação aos filhos maiores de idade, 101 pessoas sofrem com a dor da violência. Dessas, 34,65% são jovens de 20 a 24 anos; 27,72% tem acima de 30 anos; e pessoas de 18, 19 e de 25 a 29 anos representam 18,81%.

O levantamento traz, ainda, a quantidade de autores que tiraram a própria vida logo após matarem as mulheres. Nesses sete anos, 23 homens cometeram suicídio. A maioria deles (34,78%) tinham mais de 50 anos e eram ex-companheiros das vítimas.

Segundo Hanna Gomes, advogada especialista em direito penal e de violência contra a mulher, essas crianças e adolescentes, muitas vezes acabam perdendo ambos os genitores em razão do crime dado que o pai, é, em regra, o algoz da mãe. “Cabe ao estado-juiz, ao analisar o crime, verificar os efeitos e as circunstâncias da conduta julgada. O governo, por sua vez, deve acompanhar crianças e adolescentes em contextos de vulnerabilidade e promover a tutela dessa pessoa em desenvolvimento a partir de políticas públicas específicas”, destacou.

A advogada elenca exemplos de políticas públicas para esses casos. Entre elas, está o direcionamento para casas-abrigo especiais, a orientação escolar adequada, e, principalmente, o encaminhamento para profissionais da psicologia e da saúde comportamental.

Sentimento de posse
“A gente tem essa discussão se é efetivamente e simplesmente um aumento da violência ou se, por exemplo, um caso como esse a gente consegue identificar a existência do crime que a gente nomeia de feminicídio de fato e não um assassinato como tratado anos atrás, que as mulheres entravam na estatística geral. Era tido como assassinato. Enquanto, na verdade, não eram pura e simplesmente um assassinato. É um feminicídio. As mulheres morrem por serem mulheres, pela relação de posse em uma sociedade ainda extremamente patriarcal e machista e que as relações entre homens e mulheres são pautadas por esse desequilíbrio e por essa relação de posse.

Hoje a gente consegue nomear isso. Hoje a gente tem base legal. Tem lá na Maria da Penha, tem toda a reformulação penal, tem o aparato judiciário compreendendo isso. Então, já é uma mudança no Estado. Porque até então o próprio estado não enxergava isso. Mas ainda precisa muito para que as mulheres primeiro consigam compreender o ciclo de violência, depois elas tenham efetivamente os espaços para denunciar e para ter o suporte. E aí é por isso que quando a gente fala na importância dessa discussão nas escolas, porque é um dos principais vetores que atinge a todo mundo. As escolas discutirem isso, o estado promover em vários espaços de discussão junto com a sociedade dizendo tipos de violência”.

Moema Bragança, Coordenadora do curso de serviço social da Universidade Católica de Brasília (UCB)

COMO PEDIR AJUDA?
» Ligue 190

Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF). Serviço disponível 24 horas, todos os dias. Ligação gratuita.

» Ligue 197

Polícia Civil do DF (PCDF)

E-mail: [email protected]

WhatsApp: 9 8626-1197

» Ligue 180

É o número da Central de Atendimento à Mulher que registra e encaminha denúncias de violência aos órgãos competentes.
A denúncia pode ser feita de forma anônima, 24 horas, todos os dias. Ligação gratuita.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CB

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