A busca criminosa pela cura do autismo: Grupos nas redes sociais difundem uma “solução” para o transtorno

Entenda como funciona a disseminação da fake news de um alvejante que supostamente “cura” o Transtorno do Espectro Autista em grupos na internet

Espectro Autista, Web, fake news
Foto Reprodução

Esta é a primeira publicação de uma série de reportagens que expõe uma uma história de negacionismo e sério risco à saúde. Em anúncios e grupos na internet, uma mistura química é defendida livremente como uso medicinal: o MMS.

A utilização da substância como tratamento e cura para diversas doenças é considerada ilícita por não haver comprovação científica, sendo contra indicada por especialistas e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Mesmo assim, o “remédio” tem encontrado espaço no desespero, na falta de uma eficaz fiscalização e no negacionismo de familiares com pessoas diagnosticadas com autismo.

“Eu lhe afirmo que (o autismo) tem cura. Sou mãe de um garotinho de seis anos com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Médicos não têm respaldo para exigir nada porque eles querem que o autismo seja maior que nós e nossos filhos. Todo conhecimento vem de Deus e o conhecimento liberta [SIC”, escreveu Cláudia*, mãe de uma criança autista em um dos grupos onde, escondidos das autoridades, pais de crianças com o espectro debatem e são submetidos à oferta criminosa da substância.

Semelhante a um alvejante, a aplicação do produto pode causar sérios riscos à vida dos pacientes e até provocar a morte. A sigla é uma abreviação para “Mineral Miracle Solution” ou “Solução Mineral Milagrosa” em português, que consiste na mistura do clorito de sódio com o ácido clorídrico.

O “criador”, o garimpeiro norte-americano Jim Humble, difundiu o uso em 1990, mas não com a finalidade de tratar o autismo. Na época, ele criou a solução para curar seus colegas que tinham contraído malária durante viagem para a Amazônia.

Porém, atualmente, o MMS é utilizado, de forma clandestina, para “tratar” e “curar” doenças e transtornos além do autismo, como câncer, aids, depressão, ansiedade e, mais recentemente, a covid-19.

A mistura de ácido clorídrico com clorito de sódio não deve, no entanto, segundo os especialistas ouvidos pela reportagem, ser usado para fins médicos, visto que sua classificação é dada como um “saneante” pela Anvisa. Ou seja, tem fins de limpeza e desinfecção de superfícies inanimadas.

“Absurdo”
Para o professor de química medicinal e planejamento de fármacos, Adriano Andricopulo, a utilização desse tipo de substâncias é absurda, seja para tratar ou curar o autismo ou qualquer outra doença ou transtorno.

“Não há evidências de sua eficácia ou benefícios, e a ingestão ou inalação de tais produtos pode causar sérios efeitos adversos, como, por exemplo, insuficiência hepática aguda”, afirma.

Mas Humble não trabalhou sozinho todos esses anos. Além dele, também há Andreas Kalcher e Kerri Rivera. Destes, Rivera, que é autora do livro “Curando sintomas conhecidos como autismo”, é a personagem mais citada e cultuada entre os pais, usuários da substância.

“Sabemos que as vacinas causam autismo em crianças, e há mais de 10 anos a Kerri Rivera conseguiu reverter o autismo de mais de 800 crianças, neutralizando os metais pesados e eliminando os patógenos e as toxinas”, digitou Jorge*, pai de outra criança com o espectro.

A reportagem entrou e conviveu por dois meses em dois dos principais grupos que apoiam o MMS e seu uso em pessoas autistas. No grupo específico para o TEA, existem cerca de 653 membros entre pais e parentes dessas pessoas. Já no que discute a substância em geral, são 7.562 membros.

Na terra sem lei do Telegram, o assunto trocado nas conversas é focado na ‘causa’ e na ‘cura’ do autismo segundo a opinião dos internautas, que vão no completo oposto da opinião científica.

Entre os participantes dos grupos, Cláudia não é um nome desconhecido para a equipe. Nós conversamos com a mulher cerca de um ano depois da mensagem em que ela afirmava que o MMS trazia a cura do autismo. Na conversa, no entanto, a mãe não concordava mais com a própria fala. “A substância não é um milagre como dizem”, disse após negar sua identificação na matéria.

A mudança de perspectiva aconteceu pouco tempo depois da primeira mensagem, quando ela percebeu que o “milagre” não ocorreu. A mulher explica que o filho se tornou “viciado” na substância e só se mantinha calmo durante o efeito, mas quando passava, ele se tornava agitado e agressivo.

O entendimento que Cláudia teve de um ‘vício’ adquirido pelo seu filho é explicado pela médica neuropediatra e diretora clínica da INTEGRAR – Clínica de Saúde Interdisciplinar, Ellen Manfrim. A especialista diz que, como a mulher não deu mais explicações sobre o quadro da criança, muitas causas podem ser atribuídas.

No entanto, mesmo com diferentes motivos, nenhum deles aponta para um resultado positivo do MMS. “É muito comum em tratamentos alternativos uma percepção de mudança da família em relação à criança que não é notada pelos terapeutas. Então, houve uma melhora ou a família acreditou que houve? Essa falsa perspectiva de melhora pode ser atribuída ao efeito placebo, tão discutido na literatura científica”

A médica continua apontando possíveis explicações. “Pode ser também que a família deu a substância e a criança sentiu algum mal estar e ficou acuada, quieta, nas horas consequentes da aplicação”, a afirmação de Manfrim explica a percepção de Cláudia. Em caso da família ter notado uma ‘melhora’ que não existiu, é normal que os parentes voltem também a ver o comportamento de agitação comum da criança. Já em uma situação de mal estar, após passado o desconforto, é esperado que a criança volte a manifestar seus comportamentos tradicionais. É essa ‘ida e volta’ que faz com que Cláudia creia em um ‘vício’ que não existe.

Também nos grupos, por diversas vezes, um curso, que é ministrado pelo administrador dos grupos, é oferecido aos pais. O homem é técnico de informática e não tem nenhuma formação médica para lidar com o autismo. No conteúdo das aulas online, técnicas para usar e fazer a mistura são ensinadas, além de uma enorme quantidade de desinformação e fatos mentirosos sobre o espectro e seu tratamento.

Vendido por apenas R$ 99 e transmitido pelo Youtube, a prática adotada pelo homem o coloca na lista extensa de pessoas que encontramos durante a apuração, que se utilizam dos pais, do autismo e do MMS para ganhar dinheiro.

Até o momento, nenhuma autoridade se manifestou sobre a disseminação dessa mentira. Enquanto isso, pais, ‘comerciantes’ e os grupos continuam existindo livremente na web.

*Os nomes de todos personagens são fictícios, para proteger a identidade dos mesmos. Os profissionais e especialistas, no entanto, tem seus nomes e especializações reais, com exceção da profissional da Anvisa, que preferiu não se identificar.

 

 

 

 

 

 

 

J.Br

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